BERNSTEIN: 100 ANOS

A ESTRUTURAÇÃO DO DISCURSO PEDAGÓGICO: CLASSE, CÓDIGO E CONTROLE

RESENHA – BERNSTEIN, B./1996

Por

Renata Sorah de Sousa e Silva

Maria José Costa dos Santos

A obra surgiu a partir de uma inquietação do autor ao presenciar por vezes uma desumanização do discurso pedagógico. Isso se dava devido à inserção de um princípio de mercado entre o conhecimento e o conhecedor; entre a relação interna com o conhecimento e a forma externa deste. Essa inserção permitiu a construção de dois mercados bem separados: um para o conhecimento; outro para criadores e usuários. Diante desse fato, o objetivo principal da obra resenhada é descrever o dispositivo que constrói, regula e distribui códigos elaborados oficiais e suas modalidades assim como compreender a especificação, o desenvolvimento e a regulação desse código.   

O autor entende código como um regulador de orientação cognitiva, bem como um regulador de propensões, identidades e práticas na medida em que essas se formam em instâncias oficiais e locais de ação pedagógica (escola e família). O código é um princípio regulador das experiências do sujeito que se adquire tácita e informalmente. É um dispositivo de posicionamento do sujeito, regula o que pensa, o modo de ser e como se ocupa no lugar em que está. O código é precisamente a gramática da classe. O código é a gramática implícita e diferencialmente adquirida pelas pessoas das diferentes classes, essa gramática permite distinguir quais são os significados relevantes em cada contexto e como expressar publicamente esses significados nos contextos respectivos. No que diz respeito à educação, é a estrutura do currículo ou da pedagogia que determina quais modalidades do código serão aprendidas. É essa estrutura que é de suma relevância para o autor. O autor entende que existe um hiato entre o processo de transmissão e o processo de aquisição e que isso precisa ser tratado. 

Para o autor, o dispositivo pedagógico (DP) fornece a gramática intrínseca do discurso pedagógico. A gramática do discurso pedagógico é constituída por três tipos de regras: as regras distributivas, as recontextualizadoras  e as avaliativas para o processo de especialização de formas de consciência. As regras de recontextualização é que criam o discurso pedagógico. 

Assim, nesta pesquisa, o autor i) cria um modelo capaz de gerar modalidades de códigos elaborados: modalidades que são reguladas pela classe social; ii) mostra como o modelo pode ser usado para escrever códigos específicos, os quais regulam agências de reprodução cultural ou agências de produção; iii) mostra os princípios específicos que regulam modos de transmissão e aquisição e iv) permite as possibilidades de comparação diacrônica e sincrônica.

No cap.2, é feita uma distinção entre a prática pedagógica considerada como um condutor, um transportador cultural (forma social) e a prática pedagógica como um conteúdo específico (aquilo que é transportado).

A lógica interna da prática pedagógica como um condutor cultural é fornecida por um conjunto de três regras (Hierarquia; Sequência/Compassamento; Critérios) e a natureza dessas regras atua seletivamente sobre o conteúdo de qualquer prática pedagógica.

Regra hierárquica – O transmissor tem de aprender a ser transmissor e o adquirente tem de aprender a ser adquirente. O processo de aprendizagem de como ser um transmissor implica a aquisição de regras de ordem social, de caráter e de modos de comportamento que se tornam a condição para a conduta apropriada na relação pedagógica. A hierarquia pode ser implícita ou explícita. Na implícita, o poder é mascarado por dispositivos de comunicação.

Regra de sequenciamento – Toda prática pedagógica deve ter regras de sequenciamento e essas regras de sequenciamento (progressão) implicarão regras de compassamento. O compassamento é a velocidade esperada de aquisição de regras de sequenciamento; é o tempo permitido para se cumprir as regras de sequenciamento. Essas regras podem ser explícitas ou implícitas. Quando explícitas,  regulam o desenvolvimento da criança em termos de idade. As regras explícitas  de sequenciamento constroem o projeto temporal da criança e esta conhece qual é o estado de consciência que se espera dela. Essa regras de sequenciamento explícitas podem estar em listagens de conteúdos, em currículos, em regras de comportamentos, em regras de prêmio ou castigo, dentre outros. Quando implícitas, apenas o transmissor conhece o projeto temporal da criança. 

Regras criteriais – Existem critérios que se espera que o adquirente assuma e aplique às suas próprias práticas e às dos outros. Espera-se que o adquirente compreenda o que conta como uma comunicação, uma relação social ou uma posição legítima ou ilegítima. Os critérios podem ser explícitos e específicos ou implícitos, múltiplos e difusos.  

Num outro nível, há mais duas regras gerais:

As regras hierárquicas serão as regras regulativas e as regras de sequenciamento/compassamento e criteriais serão as regras institucionais e discursivas.

Quando as regras de ordem regulativa e discursiva são critérios explícitos de hierarquia/sequenciamento/compassamento, o autor denomina como pedagogia visível (PV) e se as regras de ordem regulativa e discursivas implícitas, o autor denomina como pedagogia invisível (PI).

Uma pedagogia visível coloca ênfase no produto externo (desempenho) da criança. Os adquirentes serão  avaliados conforme o grau no qual eles satisfazem esses critérios. As pedagogias visíveis e suas modalidades atuarão para produzir diferenças entre crianças: elas serão necessariamente práticas estratificadoras de transmissão, uma consequência da aprendizagem, tanto para transmissores como para adquirentes.

As pedagogias invisíveis estão menos interessadas em produzir diferenças estratificadoras explícitas entre os adquirentes porque não há a intenção em comparar a produção do adquirente com um padrão externo comum. Seu foco não está num desempenho “avaliável” do adquirente, mas em procedimentos internos ao adquirente (cognitivos, linguísticos, afetivos, motivacionais) em consequência dos quais um evento é criado e vivido. Essa realização cria diferenças entre os adquirentes, que farão parte da singularidade de cada um.

Essas diferenças de ênfase entre as pedagogias visíveis e invisíveis afetarão claramente tanto a seleção quanto a organização daquilo que deve ser adquirido, isto é, tanto o princípio recontextualizador adotado para criar e sistematizar os conteúdos a serem adquiridos quanto o contexto no qual serão adquiridos.    

Os pressupostos de uma pedagogia visível são mais tendentes a serem satisfeitos por aquela fração da sociedade cujo trabalho tem uma relação direta com o campo econômico (produção, distribuição e circulação de capital). Por outro lado, os pressupostos de uma pedagogia invisível são mais tendentes a serem satisfeitos por aquela fração da classe média que tem uma relação direta com o campo de controle simbólico e que trabalha nas agencias especializadas de controle simbólico comumente localizadas no setor público.

Na década de 50, acreditava-se que o abismo que existia nos resultados de estudantes de classe média e estudantes de classe operária baixa estava relacionado ao QI, ou seja, a um atributo herdado, imutável. Entretanto, o autor, professor numa escola londrina, realizou diversos estudos nos quais comparava resultados de testes de QI não-verbais e verbais com grupos de classe média e grupos de classe operária baixa. Os resultados apontaram que, para alunos de classe média, os resultados de testes verbais e não-verbais eram aproximados, ao passo que para alunos de classe operária baixa os resultados dos testes não-verbais eram muito superiores se comparados aos testes verbais. O autor concluiu então que as relações sociais regulam os significados que nós criamos, significados que expressamos através dos papeis constituídos por essas relações sociais. Esses significados agem seletivamente sobre as escolhas léxicas, e sintáticas, sobre a metáfora e o simbolismo. Para o autor, a corrente causal segue na ordem: relações sociais- papeis- significados- linguagem- comunicação (entre a linguagem e fala existe a estrutura social). 

O autor compreende que as relações de classe penetram os pressupostos, os princípios e as práticas da escola “de modo a posicionar os alunos de forma diferencial e oposta, de acordo com a sua origem de classe: legitimando uma minoria, invalidando a maioria” (p.139).  Considera-se que as relações de poder mantêm reproduz e legitima as posições no interior de qualquer divisão social do trabalho: do modo  de produção, da modalidade de educação, da família ou do gênero. No caso da escoa, há a preocupação com a divisão social do trabalho de professores, administradores, discursos, práticas, contextos, adquirentes, juntamente com a práticas    pedagógicas entre a escola e a família ou a escola e o trabalho.

Bernstein se detém a apresentar diferenças, não entre papeis e atividades, mas entre culturas instrumentais e expressivas, mais especificamente no interior da escola.  Para Bernstein, as culturas instrumentais dizem respeito a “fatos, procedimentos e julgamentos envolvidos na aquisição de destrezas específicas” e as culturas expressivas tratam sobre “ padrões de conduta, caráter e modos”. (p.296) Para o autor, dois contextos de socialização são o i) regulativo, que diz respeito às relações de autoridade, nas quais a criança se torna consciente das regras de ordem moral e seus vários suportes; e o  ii) contexto instrumental no qual a criança aprende sobre a natureza objetiva dos objetos, pessoas e adquire destrezas de vários tipos. (1974:181) Assim, discurso instrucional diz respeito à transmissão/aquisição de competências específicas e o discurso regulativo à transmissão de princípios de ordem, relação e identidade.

Para o autor, é importante perceber e analisar as interrelações entre as relações dominantes de poder e os princípios de controle na constituição, transmissão e avaliação do discurso pedagógico. No discurso pedagógico é perceptível  que há um discurso instrucional embutido em um discurso regulativo. Nesse discurso existem as regras que “regulam o que conta como como ordem legítima entre transmissores, adquirentes, competências e contextos (…). No nível mais abstrato, ele fornece e legitima as regras oficiais que regulam a ordem, a relação e a identidade.” (p.265). Subjacente ao discurso regulativo (onde há embutido o discurso instrucional) existem as teorias de instrução que “é um discurso recontextualizador, na medida em que regula os ordenamentos da prática pedagógica, constrói o modelo do sujeito pedagógico e o modelo do sujeito pedagógico (o adquirente), o modelo do transmissor, o modelo do contexto pedagógico e o modelo de competência pedagógica comunicativa.”(p.266) Há duas modalidades de teorias da instrução: uma voltada para a lógica da transmissão e a outra voltada para a lógica da aquisição. No caso de uma lógica de aquisição, o foco está no desenvolvimento de competências partilhadas, nas quais o adquirente é ativo na regulação de uma prática facilitadora implícita. No caso de uma lógica de transmissão, a ênfase está no ordenamento eficaz explícito por parte do transmissor do discurso a ser adquirido. (p.300)

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